O senhor Mauricio de sousa publicou no seu twitter e eu achei que valia a pena postar aqui.
Mauricio de Sousa
O seu jeito de ser
Minha avó investiu para que o filho tivesse seu ofício. Montou um salão caprichado, em estilo art decô, com espelhos de cristal, luminárias francesas e mármore italiano. Barbeiro por profissão, Antonio Mauricio de Souza, com Z mesmo, meu pai, aparava barba, cabelo e bigode mas não tirava prazer do salão. Ali, com tesoura e navalha, só fazia dinheiro. Nas horas vagas, ganhava o que seu coração mandava. Era então poeta, músico, escritor, desenhista, pintor, radialista, jornalista, ghostwriter de políticos e fazendeiros e ainda me levava ao cinema todas as noites da semana – sábado não, que era dia de festa. Dos meus 6 anos em diante, era Tom Mix hoje, Humphrey Bogart amanhã, depois Gene Kelly e Fellini, num tempo em que filme não tinha censura de idade, entrasse quem quisesse e entendesse o que desse.
Foi Petronilha Araújo de Souza, minha mãe, comigo ao colo e meu pai ao lado, quem me mostrou o mundo. Apresentou-me casas e ruas, rios e montanhas, piqueniques, procissões e carnavais. Mas foi meu pai quem me ensinou o que eu podia fazer com o mundo. Ele me construiu – sugerindo, incentivando, interagindo, me introduzindo em todas as suas artes, seu jeito de ser e a liberdade de deixar ser o que quiser. O resultado é que a grande lição que recebi dele é um mosaico de cenas grudadas no painel da infância.
Ele me mostrou a música que mais tarde me levou a ser cantor de rádio. Uma vez por mês, meu pai e seus amigos seresteiros se reuniam na casa funerária que ficava na esquina de casa, em Mogi das Cruzes. Entre flores e caixões, passavam a noite com chorinhos e sucessos da Rádio Nacional. Meu pai me mostrava os instrumentos e seus sons, a maneira de tocar. Acertava o diapasão e pedia para eu cantar em Si depois em Lá. Ali na funerária perdi o medo de soltar a voz e também de caixão – e como queria que mais meninos e meninas perdessem medo de assombração, anos mais tarde criei o Penadinho, fantasma boa praça que não assusta ninguém.
Também uma vez por mês havia outra reunião, a dos poetas. Eu ficava ali, rodeado de parnasianos declamando dores de cotovelo. Ai, como aquilo era chato. De poesia, o que eu gostava era do caderno de capa dura, preta, no qual meu pai escrevia versos com sua letra desenhada. Certa vez ele saiu, eu peguei o caderno e desenhei, ilustrei as poesias dele. Quando voltou, papai viu minha obra na obra dele e, em vez de brigar, saiu para comprar mais caderno. “Olha, este aqui é o seu caderno, desenha aqui, não no meu”, disse, explicando, jamais implicando. Meu pai nunca brigou comigo por nada que eu experimentasse ou tentasse.
Ele às vezes também fazia suas traquinagens. Morávamos numa casa pequena, quarto, sala, cozinha, banheiro. Um dia perguntei como é que tinha de desenhar para, numa paisagem, uma montanha parecer perto e a outra longe. Ele pegou lápis de cor e, na parede da sala, rabiscou a moldura de um quadro. Pintou ali uma cadeia de montanhas, uma aula de perspectiva na parede branca da sala, para desespero de minha mãe.
Mamãe às vezes ralhava com as manias do marido. Quando voltávamos do cinema e ela sabia que o filme tinha coisa de adulto, dizia: “Mas, Antonio, não é para criança ver, o menino não entende, deixe crescer primeiro”. No dia seguinte, lá íamos nós de novo, os dois companheiros, mesmo que eu, de fato, não compreendesse muita coisa. Mas também não era como mamãe pensava, pois onde adulto podia ver pecado eu só enxergava graça e esquisitice – a mesma esquisitice que achei no dia que encontrei uns desenhos estranhos de homens e mulheres sem roupa numa gaveta do meu pai. Só muitos anos mais tarde é que fui desconfiar que Antonio de Souza, além de montanhas na parede, também desenhava seus catecismos de sacanagem.
Nos anos 40 e 50, educadores desaconselhavam gibis (não só os de pornografia), diziam que revistinha incitava violência e crime. Nisso, meu pai e minha mãe concordavam: esse papo era bobagem. O consenso permitiu que um gibi aparecesse despreocupadamente em casa. Curioso, folheei, encantado com os desenhos. Meu pai me viu entretido, perguntou se tinha gostado, disse que sim. A partir daí, toda quarta, sexta e domingo à noite, quando eu já estava deitado, ele entrava no meu quarto e, da porta, jogava em cima da cama os gibis que o Roberto Marinho publicava. Nascia ali o meu futuro.
Cresci. Meu primeiro emprego foi meu pai quem arranjou, no jornal Mogi Esportivo, no qual eu desenhava símbolos dos clubes e caricaturas de jogadores. Como bico, fazia anúncios e cartazes para o comércio. Papai já havia me ensinado um pouco de pintura, mas não me dei bem com tinta a óleo nem com pincel, muito mole para o meu gosto. Meu negócio era pena e lápis. Mas ele insistia que eu deveria aprender com pincel. Um dia encontrei um modo de combinar meu jeito com a vontade de meu pai: coloquei algodão na ponta da pena, criando uma espécie de pincel firme – algo que, soube depois, Monet fez para criar o efeito diáfano do Impressionismo. Desse modo, desenhei os anúncios e também pintei, já nos anos 90, a série de quadros que mistura telas famosas com os personagens da turma, como o Mônica Lisa, paródia da Mona Lisa, de Leonardo da Vinci.
Quando meu pai percebeu que eu poderia mesmo ganhar a vida com desenho, me deu a mais prática das lições. “Filho, não adianta fazer coisa bonita se não aprender a cobrar”, disse. Pediu então a um amigo, o italiano Bruno, corretor de anúncio de rádio, que me contratasse como auxiliar de cobrança. “Quanto custam esses seus cartazes?”, Bruno perguntou de saída. Eu nem fazia ideia. “Então são 50 cruzeiros”, ele definiu. A partir daí, eu desenhava, entregava, esperava uns dias e, morrendo de medo, ia cobrar – e eles pagavam! Maravilhado, descobri a chave para transformar desenho em dinheiro.
Mais tarde, por cinco anos, fui repórter policial da Folha da Manhã. Em 1959, criei os primeiros personagens da turma, Bidu e Franjinha. Foi por volta dessa época que meu pai me deu a última de suas grandes lições. Começou a conversa com uma franqueza desconcertante. “Nunca me realizei totalmente”, disse o homem que, como todo homem, também tinha suas imperfeições. Impacientava-se, por exemplo, com quem não acompanhava seu raciocínio. Tinha dificuldade em aceitar críticas, justo ele que as fazia sem medir palavras. Numa sala no fundo da barbearia, ele mantinha sua tipografia particular, na qual publicava jornais (como um chamado A Vespa) com críticas duras ao governo. Mais de uma vez, sua tipografia foi empastelada pela polícia. Mais de uma vez, a família – pai, mãe, eu, minhas duas irmãs, Marisa e Maura, e meu irmão Marcio – teve de deixar a cidade às pressas para que meu pai não fosse preso.
Pois então. Naquela conversa, meu pai, apesar de ter sido muita coisa, até diretor de rádio e sócio de indústria, dizia-se frustrado. Baseado na sua experiência, ele foi direto ao ponto: “Não seja apenas um artista. Não fique na mão dos outros, trate também de administrar o seu negócio”. Antes de morrer, aos 65 anos, meu pai ainda trabalharia comigo, vendendo minhas tiras a jornais do interior. Nessa época, além de meu mestre, ele foi também meu embaixador.
Foi Petronilha Araújo de Souza, minha mãe, comigo ao colo e meu pai ao lado, quem me mostrou o mundo. Apresentou-me casas e ruas, rios e montanhas, piqueniques, procissões e carnavais. Mas foi meu pai quem me ensinou o que eu podia fazer com o mundo. Ele me construiu – sugerindo, incentivando, interagindo, me introduzindo em todas as suas artes, seu jeito de ser e a liberdade de deixar ser o que quiser. O resultado é que a grande lição que recebi dele é um mosaico de cenas grudadas no painel da infância.
Ele me mostrou a música que mais tarde me levou a ser cantor de rádio. Uma vez por mês, meu pai e seus amigos seresteiros se reuniam na casa funerária que ficava na esquina de casa, em Mogi das Cruzes. Entre flores e caixões, passavam a noite com chorinhos e sucessos da Rádio Nacional. Meu pai me mostrava os instrumentos e seus sons, a maneira de tocar. Acertava o diapasão e pedia para eu cantar em Si depois em Lá. Ali na funerária perdi o medo de soltar a voz e também de caixão – e como queria que mais meninos e meninas perdessem medo de assombração, anos mais tarde criei o Penadinho, fantasma boa praça que não assusta ninguém.
Também uma vez por mês havia outra reunião, a dos poetas. Eu ficava ali, rodeado de parnasianos declamando dores de cotovelo. Ai, como aquilo era chato. De poesia, o que eu gostava era do caderno de capa dura, preta, no qual meu pai escrevia versos com sua letra desenhada. Certa vez ele saiu, eu peguei o caderno e desenhei, ilustrei as poesias dele. Quando voltou, papai viu minha obra na obra dele e, em vez de brigar, saiu para comprar mais caderno. “Olha, este aqui é o seu caderno, desenha aqui, não no meu”, disse, explicando, jamais implicando. Meu pai nunca brigou comigo por nada que eu experimentasse ou tentasse.
Ele às vezes também fazia suas traquinagens. Morávamos numa casa pequena, quarto, sala, cozinha, banheiro. Um dia perguntei como é que tinha de desenhar para, numa paisagem, uma montanha parecer perto e a outra longe. Ele pegou lápis de cor e, na parede da sala, rabiscou a moldura de um quadro. Pintou ali uma cadeia de montanhas, uma aula de perspectiva na parede branca da sala, para desespero de minha mãe.
Mamãe às vezes ralhava com as manias do marido. Quando voltávamos do cinema e ela sabia que o filme tinha coisa de adulto, dizia: “Mas, Antonio, não é para criança ver, o menino não entende, deixe crescer primeiro”. No dia seguinte, lá íamos nós de novo, os dois companheiros, mesmo que eu, de fato, não compreendesse muita coisa. Mas também não era como mamãe pensava, pois onde adulto podia ver pecado eu só enxergava graça e esquisitice – a mesma esquisitice que achei no dia que encontrei uns desenhos estranhos de homens e mulheres sem roupa numa gaveta do meu pai. Só muitos anos mais tarde é que fui desconfiar que Antonio de Souza, além de montanhas na parede, também desenhava seus catecismos de sacanagem.
Nos anos 40 e 50, educadores desaconselhavam gibis (não só os de pornografia), diziam que revistinha incitava violência e crime. Nisso, meu pai e minha mãe concordavam: esse papo era bobagem. O consenso permitiu que um gibi aparecesse despreocupadamente em casa. Curioso, folheei, encantado com os desenhos. Meu pai me viu entretido, perguntou se tinha gostado, disse que sim. A partir daí, toda quarta, sexta e domingo à noite, quando eu já estava deitado, ele entrava no meu quarto e, da porta, jogava em cima da cama os gibis que o Roberto Marinho publicava. Nascia ali o meu futuro.
Cresci. Meu primeiro emprego foi meu pai quem arranjou, no jornal Mogi Esportivo, no qual eu desenhava símbolos dos clubes e caricaturas de jogadores. Como bico, fazia anúncios e cartazes para o comércio. Papai já havia me ensinado um pouco de pintura, mas não me dei bem com tinta a óleo nem com pincel, muito mole para o meu gosto. Meu negócio era pena e lápis. Mas ele insistia que eu deveria aprender com pincel. Um dia encontrei um modo de combinar meu jeito com a vontade de meu pai: coloquei algodão na ponta da pena, criando uma espécie de pincel firme – algo que, soube depois, Monet fez para criar o efeito diáfano do Impressionismo. Desse modo, desenhei os anúncios e também pintei, já nos anos 90, a série de quadros que mistura telas famosas com os personagens da turma, como o Mônica Lisa, paródia da Mona Lisa, de Leonardo da Vinci.
Quando meu pai percebeu que eu poderia mesmo ganhar a vida com desenho, me deu a mais prática das lições. “Filho, não adianta fazer coisa bonita se não aprender a cobrar”, disse. Pediu então a um amigo, o italiano Bruno, corretor de anúncio de rádio, que me contratasse como auxiliar de cobrança. “Quanto custam esses seus cartazes?”, Bruno perguntou de saída. Eu nem fazia ideia. “Então são 50 cruzeiros”, ele definiu. A partir daí, eu desenhava, entregava, esperava uns dias e, morrendo de medo, ia cobrar – e eles pagavam! Maravilhado, descobri a chave para transformar desenho em dinheiro.
Mais tarde, por cinco anos, fui repórter policial da Folha da Manhã. Em 1959, criei os primeiros personagens da turma, Bidu e Franjinha. Foi por volta dessa época que meu pai me deu a última de suas grandes lições. Começou a conversa com uma franqueza desconcertante. “Nunca me realizei totalmente”, disse o homem que, como todo homem, também tinha suas imperfeições. Impacientava-se, por exemplo, com quem não acompanhava seu raciocínio. Tinha dificuldade em aceitar críticas, justo ele que as fazia sem medir palavras. Numa sala no fundo da barbearia, ele mantinha sua tipografia particular, na qual publicava jornais (como um chamado A Vespa) com críticas duras ao governo. Mais de uma vez, sua tipografia foi empastelada pela polícia. Mais de uma vez, a família – pai, mãe, eu, minhas duas irmãs, Marisa e Maura, e meu irmão Marcio – teve de deixar a cidade às pressas para que meu pai não fosse preso.
Pois então. Naquela conversa, meu pai, apesar de ter sido muita coisa, até diretor de rádio e sócio de indústria, dizia-se frustrado. Baseado na sua experiência, ele foi direto ao ponto: “Não seja apenas um artista. Não fique na mão dos outros, trate também de administrar o seu negócio”. Antes de morrer, aos 65 anos, meu pai ainda trabalharia comigo, vendendo minhas tiras a jornais do interior. Nessa época, além de meu mestre, ele foi também meu embaixador.
Mauricio de Sousa: Criador da Turma da Mônica, que hoje tem mais de 200 personagens. Na juventude, foi cantor de rádio, ilustrador de jornais e repórter policial.
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